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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Quando a Pantera tinha fome

"Na véspera de o Benfica voltar a jogar contra o Boavista para o Campeonato, recorde-se Outubro de 1969, tempo de eleições e de uma goleada por 8-0 com seis golos de Eusébio.

O Boavista está de volta à I Divisão. Vou deixar para outras núpcias a minha opinião sobre tal regresso e para as calendas tudo o que levou à sua viagem pelos recônditos do futebol português - embora essa opinião já tenha sido largamente publicada.
Também vou deixar de lado os considerandos sobre as supostas eleições livres que terão ocorrido em Portugal no dia 26 de Outubro de 1969, com enorme afluência segundo os jornais censurados da época, e que obrigaram à antecipação da 6.ª jornada do Campeonato Nacional para a véspera.
Tudo matéria do maior interesse, como é óbvio, mas que merece prosa cuidada e se sujeita a um ou outro remoque de pé de página, está bem de ver.
Por isso, fico-me pelo Boavista - próximo adversário do Benfica neste campeonato de 2014/15 - e pelo mês de Outubro de 1969.
É que também pelo futebol se fez história. Fica, dessa forma, a política de lado.
No dia 25, portanto, o Boavista veio à Luz. Não sabiam o que os esperava os jogadores das «camisolas esquisitas» - alcunha que lhes seria posta muito anos mais tarde pelo guarda-redes Walter Zenga, do Inter de Milão, na antecipação de um confronto para a Taça UEFA. Muitos deles eram bem conhecidos do futebol português: Mário João, Barbosa, Celso, Lemos... Não sabiam o que os esperava nem era fácil de adivinhar. Uma tempestade vermelha e um vendaval Eusébio soprariam em Lisboa e desfariam em pedaços a equipa dos quadradinhos.
Na altura, chamaram-lhes ingénuos. Havia neles uma vontade de se bater de igual para igual, uma genica ofensiva sem sustentação, um ímpeto suicida que os levou a atirarem-se de cabeça para debaixo da máquina trituradora que contava com a Pantera Negra em todo o seu esplendor.
Por mais que lhes tenham gabado a coragem, foram varridos como ramos secos de árvores antigas à passagem de um tufão.

Uma enlouquecida dança vermelha
Nessa tarde, na Luz, Eusébio marcou seis golos. Não era a primeira vez que o fazia e não iria ser a última.
A linha avançada do Benfica era composta por Simões, Torres, Eusébio e Diamantino. Atrás deles postavam-se Toni e Coluna. Demolidores.
Aos 17 minutos, já o Benfica vencia por 2-0 e os canhendos dos jornalistas presentes registavam algumas outras oportunidades perdidas.
2-0: dois golos de Eusébio, aos 10 e 17 minutos.
Nas bancadas, não havia quem duvidasse da goleada. A supremacia técnica, táctica e atlética dos encarnados era de tal ordem que vinha aí a degola dos inocentes. E a Pantera tinha fome.
Ao intervalo, o resultado era quase quadrado: quatro-a-zero. Torres e Coluna fizeram a diferença no marcador. Mas o melhor estava ainda para vir. Eusébio, Eusébio, Eusébio e mais Eusébio.
Sim, isso mesmo: quatro vezes Eusébio em 45 minutos.
Eusébio para todos os gostos; Eusébio em todos os feitios.
Revelam as crónicas que Diamantino foi terrível de inquietação e talento. Que a firmeza de Toni e de Coluna se fez sentir por todo o campo. E que Eusébio foi sendo Eusébio a cada um dos minutos que corria por entre os ponteiros do relógio como grãos de areia fina por entre os dedos de uma mão. Há quem diga - esses que viram e que eu leio, ávido de interesse - que Eusébio podia ter marcado mais quatro, cinco, seis golos. Que os seus remates tonitruantes assustavam o guarda-redes Quim, levantando-lhe os cabelos em cachos encrespados no alto da nuca. Pode ser que haja exagero nessas prosas inflamadas, mas Eusébio sempre foi, por si só, um exagero.
A Pantera Negra tinha fome e devorava peças de xadrez. 46, 53, 54 e 81 minutos: mais quatro golos a somar aos primeiros dois. As eleições do dia seguinte podem ter ferido de morte o regime em Portugal. Mas, pelas bancadas da Luz, o ritmo frenético vermelho nada tinha que ver com revoltas sociais. Era uma dança. Uma dança do fogo enlouquecida no centro da qual ardiam adversários desesperados.
8-0: seis golos de Eusébio! Com ponto de exclamação!
Eusébio devia levar sempre ponto de exclamação!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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