Últimas indefectivações

quarta-feira, 11 de março de 2015

Da cabeça

"Meu caro Nélson Évora:
Porque já toda a gente o fez não vou falar de si a fugir, deslumbrante, ao inferno que se abriu a seus pés, vou falar da razão porque ganhou o que ganhou fugindo do inferno como fugiu. Talvez se lembre: no dia em que A Bola lhe entregou o troféu de Homem do Ano 2008 a Teresa e o Carlos Lopes também foram - e marcou-lhe a posição:
- Olho para o Nélson e vejo-o como eu era: nunca tive medo de nada, de ninguém. Pensava sempre: bater, não batem, ralhar, se ralharem, isso não dói. Receio só tinha das lesões. Quando sabia que estava em forma, livre de dorzinha aqui e ali e mais além, meus Deus, como era, era como o Nélson é agora, eu sei...
Depois, a Teresa contou:
- Na véspera da maratona dos Jogos de Los Angeles, o Carlos dormiu toda a noite como pedra. Eu não, andei para ali a levantar-me quase de hora a hora, em ânsias, sem pregar olho...
João Ganço riu-se, revelou:
- Em Osaka, a caminho do estádio, dei com o Nélson a dormir no autocarro, só me passava pela cabeça: incrível como alguém que vai lutar por uma medalha num Mundial consegue estar assim...
Ainda mais desconcertante a revelação que de si soltou (lembra-se?):
- Pior: o professor teve de ir buscar-me ao quarto. Estava com o Arnaldo Abrantes a fazer um jogo de estratégia, tão focado nisso que nem dei pelo tempo. Arrancámos a correr para o estádio, saí de lá campeão do mundo a pensar que um ano depois era para ser campeão olímpico. E também fui...
(Mas não foi, sabe-se porquê.) Em Praga, quando o espanhol Torrijos o ultrapassou ao terceiro ensaio, eu que o conheço bem, disse para dentro de mim:
- Picou-o, está tramado...
Dito e feito: você voou para mais longe, aterrou de novo no paraíso - e eu, notando que ao sair da areia, tocara, subtil, com o dedo na sua cabeça, pensei:
- Esta emoção que estou a sentir deve-se à cabeça mais fantástica que eu conheço. Aliás, conheço outra assim, só mais uma assim, a do Carlos Lopes..."

António Simões, in A Bola

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