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quarta-feira, 11 de março de 2015

Salvio sem jeito para truques

"Tem mais olhos para o jogo do que ouvidos para o efeito que provoca nas bancadas; e vai sempre direito ao assunto: não engana, desvia-se; não espera, acelera; não finta, atropela; não se recreia, joga futebol.

1. Decorria o Mundial de 1958 quando o seleccionador brasileiro, Vicente Feola, vendo um jogo da Suécia pela televisão, se deixou impressionar por Kurt Hamrin - caiu até na asneira de elogiá-lo em voz alta, dizendo que era preciso ter cuidado com ele. Nilton Santos, a Enciclopédia, que a FIFA considerou, em 2000, o melhor lateral-esquerdo da história, não se conteve e contrapôs irritado: 'Não dá para entender. O senhor tem aí o Pelé e o Garrincha, que jogam mil vezes mais do que esse tipo, e deixa-os sempre no banco'. Até hoje, são raros os treinadores que ultrapassaram o desfasamento entre os riscos da singularidade nas equipas que formam e o deslumbramento que ela provoca nos adversários que precisam de travar. Salvio não contribui para esse dilema. É como aquelas equipas que toda a gente sabe como jogam mas ninguém consegue vencê-las.
2. A inércia prolongada e a desinspiração afectam-lhe o raciocínio e levam-no a desaproveitar as imensas qualidades em que assenta o seu futebol concreto e rectilíneo. Nem sempre sabe esperar pela sua hora. Apesar disso, raramente se entrega a exercícios fora do contexto do jogo e dos interesses da equipa. É condutor que limpa defensores com golpes de cintura e gere a velocidade segundo a fórmula de sucessivas mudanças de ritmo e direcção. Mesmo quando concebe quadros solitários, não se inspira na teatralidade de gestos e movimentos nem age como eterno candidato e herói: na esmagadora maioria dos casos, resolve problemas quando leva a bola, toca e segue, criando condições para que seja o colectivo a descobrir e aproveitar os espaços que os seus marcadores foram deixando vazios na perseguição.
3. Por não ser um grande driblador, despoja extravagância e exibicionismo do reportório. Muitos dos que embriagam o público com soluções exclusivas levam os treinadores a loucura, sob acusação de indisciplina e individualismo - era o que Feola pensava de Pelé e Garrincha em 1958. Salvio não automatizou um drible mas a recusa dessa mecânica repetitiva não implica fazer-se à estrada empenhado apenas em inventar pelo caminho. Pode faltar-lhe a magia que faz do futebol, mais do que um jogo, um espectáculo grandioso e uma expressão de arte absoluta: mas é a estrela que, indiferente a fantasia e hipnose, releva a importância de elementos nem sempre considerados prioritários na definição de um protagonista maior: eficácia, técnica individual, coordenação motora, visão, inteligência, solidariedade e golo - já fez 12 em 2014/15.
4. Não há estilos melhores do que outros. A eternidade habita no génio universal de Figo, Robben, CR7 e Hazard mas também no requinte de Quaresma, Nani e Gaitán: na acção demolidora de Sérgio Conceição, Di Maria e Carrilo e no golo de Simão, Bale e Tello. Salvio é uma súmula de todos, caracterizado por ter mais interesse no espaço do que nos adversários e valorizar mais o senso comum do que o adorno; é um sprinter que, podendo ganhar terreno em linha recta, não se põe com serpenteados, e um realista com técnica sublime, que não perde tempo com truques. Sendo um jogador com mais olhos para o jogo do que ouvidos para o efeito que provoca nas bancadas, é um extremo em permanente estado de exaltação, que vai sempre directo ao assunto: não engana, desvia-se; não finta, acelera; não espera, atropela; não se recreia, joga futebol."

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