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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Há barcos para todos os portos menos para a vida não doer...

"Artur, o «Ruço», sofreu sempre. Corria pela direita, os cabelos loiros em ondas correndo atrás dele, e «jogava-dava-e-levava» como uma vez disse dele o grande Carlos Pinhão.

A primeira vez que o vi foi no estádio dos Barreiros, no Funchal, correndo pela linha branca de cal, no lado direito. O campo ainda era de terra batida e fazia calor ao fim da tarde. Calor de ananases e bananeiras como é próprio da ilha.
Ele corria e o cabelo loiro, comprido, parecia correr atrás dele numa onda irrequieta e amarela.
Chamavam-lhe o «Ruço»: Artur Manuel Soares Correia. Nasceu em Lisboa. No Bairro Alto.
A vida foi-lhe madrasta. Os adeptos não.
Nessa Académica da minha infância jogavam Gervásio e Rui Rodrigues, Mário e Vítor Campos, Rocha e Manuel António. E Artur, sempre Artur.
Tanta gente ligada ao Benfica, não é?
Sim. O treinador era Mário Wilson. Nunca um grupo de estudantes esteve tão perto de ser campeão nacional de Futebol. Mas havia o Benfica. E o Benfica não deixou.
Artur era visível, autoritário, plástico. O rumo da Luz era inevitável para um jogador como ele. Chegou na época de 1971/72. Ficou seis anos. Depois atravessou a estrada e seguiu para Alvalade.
Estreou-se em grande nas Antas, com um vitória por 3-1 no dia 12 de Setembro de 1971. Depois o lugar foi dele. Ocupou-o, conquistou-o, manteve-o com brilho e raça.
Lembro-me dele outra vez, no Estádio Nacional, jogando com a camisola dos cinco escudos azuis de Portugal, os cinco escudos azuis dos reis mouros e vencidos. Chutou pouco depois do meio campo: a bola correu cosida à relva verde-húmido, num traço perfeito sem interrupções. Entrou no canto direito de um enorme norueguês atónito. Foi um único golo de Artur pela Selecção Nacional, acreditam?
Acreditem: eu estava lá e vi. O pé direito de Artur no gesto único de um remate sem remédio. O pé direito de Artur; o pé esquerdo desapareceu entretanto na vertigem de um vida azeda como vinagre.
Fernando Pessoa escreveu: «Há barcos para todos os portos menos para a vida não doer».
Miguel Torga escreveu: «Há momentos para se fazerem as contas com a dona da pensão da vida»...
E Artur aí, entre nós, sem o pé com que marcou aquele golo que eu vi, de tão perto que podia ter sido até mesmo eu a fazer o remate, a saltar de alegria. Faltar-me-iam, no entanto, os cabelos longos e loiros da sua imagem de anjo mau.

Kovacs: «O melhor defesa direito da Europa»
Stefan Kovacs, o aplainador do Ajax-todo-o-terreno-futebol-total que depois Rinus Michels, o «General», tornou eterno: «O Benfica é uma equipa temível! Ataca por todos os lados!»
Não se esqueçam: do lado direito havia Artur.
Stefan Kovacs outra vez: «Artur é o melhor defesa direito da Europa!»
Não me esqueço: nunca conheci Kovacs; conheci Rinus Michels. Por duas ou três vezes falámos horas de futebol. E sobre Artur também, claro está!
A dona da pensão da vida matou-o aos poucos, lentamente com a crueldade de um diabo de saias.
Pleurisia: um vírus ou uma bactéria irrita a pleura, a membrana que recobre os pulmões.
Calculam o estrago que faz num jogador de Futebol?
Embolia pulmonar bloqueio da artéria pulmonar ou de um dos seus ramos.
Calculam o estrago que faz num jogador de Futebol?
Pois... A dona da pensão da vida calculou todos os passos para que a vida de Artur não deixasse de doer.
Doeu: doeu-lhe sempre!
Viu a morte do lado de lá da vidraça da cama de um hospital, abatido pelo tiro certeiro de um acidente vascular. Aguentou-se firme! Fez-lhe frente e ganhou.
O Pinhão, o Sr. Pinhão, Carlos Pinhão de jogar com as palavras, escreveu: «ele jogava-dava-e-levava». E mantinha-se em pé como ainda hoje se mantém numa perna só. Valente como Artur sabe ser.
O coração, esse, mantém-se vermelho-intenso-sem-descanso.
Artur só já não corre, o cabelo loiro correndo atrás dele; corre-lhe a vida sacana pelas veias..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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