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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Traçando no firmamento orbitas arbitrárias...

"Nenhuma filósofo seria capaz de explicar Fernando Chalana. Só os poetas! E poetas enormes, diria até que radicais. «Cada degrau que sobe na torre da sua perfeição é às custas da luta que trava com um duende...»

Quem viu jogar Fernando Chalana devia guardar essas memórias como um quadro valioso que se pendura na memória de toda uma existência. Eu vi-o jogar. Muitas e muitas vezes. Ainda éramos ambos meninos, ou pouco mais, afinal temos praticamente a mesma idade, ele trocava os olhos aos adversários, trocava os olhos aos a nós que, nas bancadas da velha Luz, nos juntávamos aos milhares, e corria livre sem que ninguém lhe pudesse tocar, como um fantasma, ou melhor, como uma sombra que se desprendesse do corpo assim à maneira de Peter Pan, o rapazinho que não queria crescer. Sempre gostei de saber poemas de cor - dificilmente há melhor exercício para a memória - e Chalana era como um poema de Torga que começa assim:
«Joga a bola, menino
Dá pontapés certeiros na empanturrada imagem deste mundo».
Fernando Chalana dava pontapés num mundo empanturrado de vaidades - ele que é o jogador menos vaidoso que alguma vez conheci, embora tivesse todas as razões para exibir uma certa vaidade - e fintava a verdade. Digo que fintava a verdade porque era, também, o rei da fantasia. Isto é, fazia fintas impossíveis, assim como quem vai e depois já não vai, a bola colada aos pés como se fosse por um elástico, de repente dava a sensação de que fugia ao seu controlo e, logo em seguida, regressava obediente e submissa, como um cachorrinho vadio, diria Nelson Rodrigues.
Nelson Rodrigues: o mestre da crónica. Ele seria capaz de escrever prosas formidáveis sobre esse talento sem fim que se chamou Fernando Albino de Sousa Chalana, nascido no dia 10 de Fevereiro de 1959, no Barreiro. Ele escrevendo prosas formidáveis, e eu envergonhado por não saber escrever assim, tão cheio de imagens ajustadas e de preciosidades literárias. Por isso, para falar de Chalana invoquei o Torga:
«Traça no firmamento órbitas arbitrárias
onde os astros fingidos percam a majestade».
Sim, havia em Chalana a majestade simples dos astros verdadeiros e não fingidos. E, depois, o seu firmamento estava no drible, perfeito, desconcertante, quase maldoso. Eu digo quase maldoso e insisto: onde parecia haver maldade era só divertimento puro de um menino que joga a bola até se perder na eternidade.

Corre, Chalana, corre...
Quem viu jogar Fernando Chalana, guarde-o também na parece branca da saudade. Aquela forma de encantar a bola, hipnotizando-a, fazendo-a correr por aqui e por ali, às vezes conduzida pelo seu pé direito, por outras vezes agarrada ao seu pé esquerdo como os garotos que se penduravam na boleia do eléctrico da Gomes Freire. Em seguida, subitamente, o passe, o centro, o remate. Raramente violento, que ele amava tanto a bola que não seria capaz de tratá-la dessa forma. Quase sempre certeiro, porque era um matemático do futebol, um geómetra do jogo, um assombroso movimentador de tudo o que, em seu redor, ansiava por movimento. Toda a gente obedecia às suas órbitas arbitrárias: companheiros, adversários, público... Os olhos fixavam-se na sua dança enlouquecida por espíritos, pelos seus bailados de duende de Lorca, esse poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo se explica. Nenhum filósofo seria capaz de explicar Fernando Chalana. Só os poetas! E poetas enormes, diria até que radicais. «Cada degrau que sobe na torre da sua perfeição é às custas da luta que trava com um duende, não com um anjo, como se diz, nem com a sua musa». Era Lorca, que o escrevia. Quando Chalana joga, mesmo que apenas nas lembranças, deixem falar os poetas. Joga a bola, menino! E ele jogava...
Perseguido por opositores fantasmagóricos, incorpóreos - atravessava-os a todos, por dentro e por fora,a bola sempre companheira, enlevada, encantada com a ternura dos seus pés esquerdos e dos seus pés direitos - Chalana tinha dois pés exactamente iguais, não vale a pena tentar distingui-los. E ia, ia sempre! As pessoas levantavam-se dos seus lugares fascinadas pelo ilusionismo da sua passada leve, um tudo-nada acima da Terra que é o que sucede aos imortais. Vejo-o ainda, vejo-o sempre. Ele não se repete.
«Brinca na eterna idade
Que eu já tive e perdi
Quando, por imprudência, saltei o risco branco da inocência
E cresci»."

Afonso de Melo, in O Benfica

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