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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A galinha de D. João V

"Não há um bom inglês de sangue azul que não tenha a vida toda estendida em papel azul, daquele que se usava para documentos oficiais.

Falo, por exemplo, de Lord Primrose, Archibald Philip Primrose, V Lord Rosebery, I Earl of Midlothian, KG, KT, PC, FRS. Estão a ver o que quero dizer? KG – Member of The Most Noble Order of the Garter; KT – Member of The Most Noble Order of the Thistle; Member of Her Majesty’s Most Honourable Privy Council; FRS – Member of Fellowship of the Royal Society.
Um verdadeiro apepinador!
Andar com toda esta honorabilidade às costas e ter sido primeiro-ministro do Reino Unido não lhe tirou nem o gosto pelas corridas de cavalos nem pelo futebol.
Mais umas linhas sobre Lord Primrose e já vou à Galinha de D. João V, outro grande mestre de arte de apepinar, para usar a esplêndida expressão do Arturinho Corvelo na não menos esplêndida A Capital do divino Eça.
Archibald, para os mais íntimos, foi proprietário de uma série de quadrúpedes altivos, dois dos quais ganharam mesmo o Derby, o que é mais ou menos como ser campeão inglês de cavalos.
O cargo de Primeiro Ministro não o satisfez por completo. Assim sendo, foi também presidente do London Scottish Rugby Football Association, e presidente honorário (havia lá adjectivo que lhe encaixasse melhor!) tanto do Hearts of Midlothian FC, antiquíssimo clube de Edimburgo, e da Federação Escocesa de Futebol.
Ah! Archibald não era apenas um apepinador de mérito. Era também um daqueles lordes que não gostam de ouvir não.
Agora desvio-me um pouco na tagarelice.
Outro que não era muito dado a nãos foi o nosso D. João V. Uma figura, esse D. João V!
Conta-se que era um notável caçador de espécies do sexo oposto e que além de incontrolável nessas perseguições, também não fazia muita questão de as manter ocultas da rainha, D. Maria Ana de Áustria, que lhe fez o obséquio de o presentear com nada menos de dez descendentes, cumprindo escrupulosamente o seu papel de progenitora e mãe.
Gosto desta história e, sempre que posso, impinjo-a aos meus desprevenidos leitores.
A despeito, ou talvez por causa da frequência desses partos, o leito real tinha o movimento inusitado de uma carreira da Índia: sopeiras, freiras, cozinheiras, aias, imaculadas senhoras da Corte, quem sabe se um ou outro pajem mais ligeiro, mas isto já sou eu a especular.
O incómodo espalha-se. Marqueses, duques e barões inflamam-se com histórias de alcofa que metem marquesas, duquesas e baronesas e o mais que se está para saber.
Ora bem: D. Maria Ana de Áustria queixa-se ao prior da Corte e pede-lhe para interceder junto do rei por uma maior frequência dos seus aposentos conjugais. O prior pede uma audiência e recebe um convite para almoçar. Vários pratos: todos de galinha. O rei fala; o prior ouve. Quando tenta expor as preocupações íntimas da filha do Imperador Leopoldo, D. João impôs um intervalo: que voltasse no dia seguinte, que se almoçava outra vez. Almoçou-se. Vários pratos: todos de galinha. E o episódio repetiu-se durante mais dois, possivelmente três dias, pouco importa.
O prior enxofrou-se: não por não conseguir trazer à colação o descontentamento de D. Maria Ana, mas por aquele exagero de galinha que infestava as refeições reais. É então que D. João V, matreiro, soltou uma das grandes verdades da História deste país acanhado: «Tem razão senhor prior, nem sempre galinha, nem sempre rainha…».
Volto a Primrose. Expressão simples da sua natural vaidade, muito britânica, como está bem de ver, exigia que os seus cavalos corressem com as suas cores – assim um laranja misturado com rosa, muito pouco agradável à vista mais sensível, mas ainda assim orgulhosamente denominada ‘primrose’.
Porque também era adepto do nem sempre galinha nem sempre rainha, mal teve tempo livre no meio de todas as suas obrigações para com a corte da imarcescível Alexandrina Victoria, tratou de fazer com que a seleção da Escócia, que geralmente equipava com um tão discreto como elegante azul-escuro, vestisse umas camisolas meio pindéricas, precisamente daquela cor ‘primrose’ que era algo daquilo que se chamaria entre nós de cor-de-burro-quando-foge.
A sorte protege os audazes e ter a audácia para usar camisolas ‘primrose’ era, segundo um bom cavalheiro inglês, tão arrojado como usar um fato de cheviote num jantar primaveril. Os audazes escoceses, enfiados nos seus jerseys psicadélicos, batem a Inglaterra por 4-1 no British Home Championship de 1900. Os golos de Robert MacCall, o Toffee Bob, nada menos de três, fazem desse desafio um dos mais inesquecíveis da sua história.
Eis-nos perante a tremenda realidade: um e outro levavam a sua avante. Mais galinha, menos galinha…"

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