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quarta-feira, 21 de março de 2018

Nada de confusões

"Afadigam-se alguns a perguntar-me: “Afinal, qual é o seu clube?”. A minha resposta é sempre a mesma: “O Belenenses!”. Só que não sei se as pessoas entendem porque sou do Belenenses e não de qualquer um dos “três grandes”. O Belenenses, se vale, e muito, pelo que já fez, no desporto nacional, não vale menos, pelo que, para mim, significa. Do Clube da Cruz de Cristo era o meu pai, eram os amigos do meu pai e era a rapaziada que eu acompanhava, não em turismo contido e bisonho, mas em sadias gargalhadas e loucas correrias, pelos bairros lisboetas da Ajuda e de Belém. Hoje, os paradigmas surgem com um carácter holístico e pan-relacional. Em criança e rapaz, o meu mundo também era, mais coisa menos coisa, holístico e sistémico, melhor dito: era uma rede de sólidas relações, onde cada ser depende do outro e alimenta o desenvolvimento do outro, comungando todos do mesmo princípio e do mesmo fim. Desde muito novo, mesmo sem conhecer o Descartes, eu cheguei à conclusão, que o “penso, logo existo” não se compaginava com o “inconsciente colectivo” da minha rua, da minha casa, da minha vida airada. Até que… comecei a trabalhar, no Arsenal do Alfeite. A Anna Feitosa publicou um livro encantador, Eu também vou florir na Primavera (Chiado Editora, Lisboa, Dezembro de 2017). Depois de o ter saboreado e lido, concordei com o Aquilino Ribeiro: “Sem a natureza, ar, árvores, comparsas, bichos, o homem não existe”. A Anna Feitosa escreveu, possuída de uma ternura secreta, que não a larga nunca: “Esta árvore sabe pôr-se frondosa e florida. Sabe fazer folhas enormes em forma de coração e sabe fazer cachos de flores em arranjos magníficos e na primavera sabe encantar o mundo e o ambiente. Esta árvore sabe também ser discreta e passar despercebida. Esta árvore sabe a lição do Eclesiastes – tudo no universo tem o seu tempo certo” (p. 92).
E, no tempo certo, com 19 anos de idade, ingressei no Arsenal do Alfeite. Portugal vivia então sob o jugo salazarista. Ora, quando se impede a liberdade das pessoas e se não aceita a sua criatividade; quando se condena um ser humano a repetir, fielmente, a “voz do dono” e não se reconhece portanto que a liberdade e a criatividade são valores sagrados – não há progresso, não há desenvolvimento que resistam. Vivi, em pleno salazarismo, quarenta e um anos. E ainda hoje lastimo que, num Estado que se dizia nacionalista e católico, fossem tão evidentes as limitações das liberdades. A censura, o regime corporativo, o combate ao pluripartidarismo, a elaboração da Concordata, o império colonial, a guerra em África, os inúmeros presos políticos – são prova insofismável de que o Estado Novo era mesmo uma ditadura. Também não escondo que a grande maioria dos bispos portugueses, liderados pelo Cardeal-Patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, não tenha denunciado nunca a opressão e a violência do regime. É evidente que D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, os sacerdotes demissionários do Seminário dos Olivais, o Padre Felicidade Alves e um reduzido número de padres e leigos combateram a imoralidade do salazarismo mas, no casos dos padres e dos leigos, sem o apoio dos seus bispos! A “imoralidade do salazarismo”? Sim, porque o ser humano desponta, como um ser moral, principalmente quando respeita o seu semelhante, na sua autonomia; quando defende os interesses dos outros, mesmo quando esses interesses não coincidem com os seus. Até, no conhecimento científico hodierno, os paradigmas têm um caráter holístico e sistémico. Explicam-nos o universo, não como uma justaposição de coisas, mas como uma rede maravilhosa de relações. E, nesta imensa totalidade, como já o referi acima, cada ser é indispensável para os outros seres…
E, sem liberdade, a pessoa pode durar, mas não vive. E, se não vive, não pode ter saúde. Cito de cor, uma frase de Viktor Frankl que eu li já não sei onde: “Nós, médicos, passamos a vida a dizer aos doentes: faça exercício físico, não coma açúcar, não coma sal, etc. E esquecemo-nos de lhes dizer que o primeiro factor de saúde é este – que a vida tenha sentido, para nós”. Não se nega que um exercício físico pode ser um indiscutível factor de saúde. Só que o sentido da vida é o primeiro. Com um exercício, unicamente físico, com uma medicina, unicamente orgânica, aprendemos a durar; com o sentido da vida, aprendemos a viver. O positivismo, que dessora os programas universitários, o que anda a defender, por aí, não passa de um individualismo pretensamente aristocrático e pouco mais. Um cientista famoso, se examinarmos com cuidado o que ele diz e o que ele faz, é sempre um filósofo da condição humana. A pureza integral de Minerva não se destina a fazer “especialistas” mas “homens cultos que sejam especialistas” e por esta razão muito simples: é a cultura que nos dá o sentido da especialidade. O “especialista”, sem cultura é um “novo bárbaro”, assim como um palavroso, que se julga culto, e desconhece as grandes aquisições da ciência do seu tempo, não passa de um analfabeto, mesmo que este analfabetismo possa transformar-se, principalmente na vida partidária, num requisito de promoção social. Faleceu, há poucos dias, o meu amigo, Dr. Camacho Vieira. Relembro como ele me falava do seu colega de república, em Coimbra, o escritor e médico João de Araújo Correia: “Tinha uma invulgar formação médica, que acompanhava de uma leitura constante dos grandes escritores”. E dizia ainda, sempre enamorado da ciência e da arte: “O João foi um novo Júlio Dinis”.
Portanto, nada de confusões: não sou, nem benfiquista, nem portista, nem sportinguista. Mas também não sou nem antibenfiquista, nem antiportista, nem antisportinguista. Nasci na freguesia da Ajuda, em Lisboa. Nasci belenenses, vou morrer belenenses. Mas, como não vejo inimigos nos adversários do meu Clube, eu delicio-me em salientar o muito que o país deve aos “três grandes” e a todos os que, não sendo tão grandes em número de sócios e de vitórias, são igualmente grandes, no amor pelo desporto e por aqueles valores morais, sem os quais não existe mesmo desporto. Mas, assim como o Sol morre hoje para ressuscitar amanhã, acreditemos que amanhã… poderá ser melhor! No entanto, como não quero ser um antepassado (e um antepassado de mim próprio) continuo a pleitear por um desporto que seja, não só ciência, mas também sabedoria, quero eu dizer: uma teoria da formação do ser humano. E, por fim, que também se estude como um pretexto para falarmos de um tempo em que vivemos e somos. E, porque o mundo (e o nosso mundo) não é unidimensional, o desporto que dele nasce não o é também. Assim, figuras exemplares do desporto não podem limitar-se ao Ronaldo e ao Messi, ao Mourinho e ao Guardiola, ao Federer e ao Nadal e aos outros mais mediáticos desportistas de elite. Desportista exemplar é o que faz da práxis desportiva uma práxis formativa. Aqui, não haja também confusões: o Desporto nada tem a ver com uma sonolenta aula de doutrina, porque o desporto é movimento intencional da transcendência, que é física, social e moral. O Desporto é jogo e movimento e agonismo e instituição e projecto. E também transcendência, mas de ampla e cordial respiração humanista."

2 comentários:

  1. Fico estupefacto como alguém ainda perde o seu tempo com este velho caquético que nunca acrescentou, nada de NADA, ao Futebol nacional !...

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  2. 100% de acordo com o artnis, e acrescento mais um nome José Neto!

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